Sobre legados e caminhos
Enquanto houver desigualdades no Brasil, será necessário falar sobre elas para sensibilizar e mobilizar os diversos setores que compõem a sociedade e, desse modo, enfrentá-las com todos os meios existentes. E o esforço incansável pela construção de uma sociedade pautada pela equidade precisa ser o legado que deixaremos para as próximas gerações.
E legado foi uma palavra presente em minha vida em 2024, pois marcou o lançamento do livro sobre minha trajetória profissional, Minha Escolha pela Ação Social – Sobre legados, territórios e democracia. Relembrar, por meio desse livro, o percurso que tracei até aqui me faz rememorar o legado que minha mãe, Tide, me deixou.
Esse legado foi, inclusive, a força motriz que me impulsionou a criar a Fundação Tide Setubal, que, para além de carregar consigo o nome de minha mãe, é reflexo da marca que ela transmitiu para a construção de um mundo melhor. Nesse contexto, destaco no trecho a seguir, que faz parte do meu livro, valores na minha trajetória profissional e do trabalho da Fundação no enfrentamento das desigualdades:
A busca por um país justo, com oportunidade para todos e melhores condições de vida nas periferias, me levou a assumir publicamente a defesa de políticas públicas voltadas aos territórios de maior vulnerabilidade social, sobretudo nos campos da educação, da saúde, dos esportes, da juventude, da cultura, da assistência e dos transportes, em diálogo com os criadores dessas políticas públicas, para que a população seja atendida com dignidade e exerça a sua cidadania.
Um exemplo nesse contexto diz respeito às obras realizadas no Jardim Lapena, bairro da zona leste de São Paulo, para melhorar a infraestrutura urbana do território e a qualidade de vida da população que lá vive. Esse processo teve, por meio das demandas apresentadas pelos moradores a partir do Plano de Bairro, articulação paradigmática entre comunidade, sociedade civil e poder público, a partir do envolvimento de secretarias da Prefeitura de São Paulo. Trata-se, afinal, de um modelo segundo o qual as populações das periferias podem – e devem – ter participação ativa no destino das obras e melhorias do desenho desses mesmos territórios.
Esse modelo do Jardim Lapena inspirou o trabalho do Programa Periferia Viva, da Secretaria Nacional de Periferias (SNP). O programa, que faz parte do Ministério das Cidades do governo federal, objetiva integrar a realização de obras de infraestrutura às necessidades das populações dos territórios onde serão feitas essas intervenções. O processo é conduzido por meio da atuação do poder público em parceria com as organizações, lideranças e populações locais. O foco consiste, enfim, em enraizar o potencial impacto de tais intervenções para melhor integrá-las a outras políticas com base nas particularidades territoriais.
Fico muito feliz por ver um projeto da Fundação Tide Setubal desenvolvido no Jardim Lapena, por meio da articulação entre Estado, universidade e comunidade, tornar-se uma política pública replicada em nível nacional.
Boa leitura,
Maria Alice Setubal
O território como método para uma sociedade melhor e mais justa
Desafios climáticos, socioeconômicos, morais e geopolíticos parecem ter dado o tom do ano de 2024. Dos desastres climáticos no Rio Grande do Sul, passando pelas queimadas nos Estados Unidos e enchentes na Europa, a persistência dos conflitos na Ucrânia e na Palestina, os avanços da IA e do poder das redes sociais, chegando ao final do ano com a reeleição de Donald Trump, foram muitos os fatos que se somaram para nos mostrar o quanto nós, como comunidade internacional, precisamos avançar na busca de novas respostas para os desafios coletivos que se colocam.
Produzir mais e mais rápido, simplesmente aumentando a riqueza mundial na expectativa de que a acumulação e a abundância trarão bem-estar a todas as pessoas, parece ser uma utopia cada vez mais absurda e, por vezes, cínica. A mensagem de 2024 talvez seja justamente esta: a solução não é fazer mais e mais rápido, mas, sim, fazer diferente.
Para a Fundação Tide Setubal, esse contexto nos fez querer aprofundar o sentido da nossa missão e buscar o que do nosso trabalho pode contribuir para a construção de novas respostas. Que lições a ação junto aos territórios periféricos nos traz em relação aos desafios civilizatórios que se avolumam e se tornam cada vez mais frequentes? O que os territórios nos ensinam sobre fazer diferente para construir modos de vida mais justos e sustentáveis?
Os territórios são o local em que a vida acontece, os espaços nos quais existem memória, encontro e senso de pertencimento. É nos territórios que as identidades e as potencialidades são forjadas. Também é nos territórios onde os problemas se manifestam de maneira aguda, persistente e inter-relacionada. Assim, agir em territórios nos empurra a uma nova forma de pensar e fazer.
Isso porque, quando nos comprometemos de maneira genuína com o desenvolvimento humano, urbano e econômico dessas localidades, entendemos que não se trata apenas de encontrar boas soluções, mas também de viabilizar novos processos.
Sozinhos, bons projetos quase sempre se mostram insuficientes e inacabados diante da severidade e da complexidade da realidade da vida. Em territórios, aprendemos que um compromisso consistente com o desenvolvimento passa por colocar em movimento processos de mudança, criar dinâmicas que tenham em seu centro as populações locais e a sua capacidade de interagir de maneira contínua com os setores público e privado na construção de melhorias, reconhecendo que as verdadeiras transformações desejadas – climáticas, sociais, políticas e materiais – só serão alcançadas a partir de ações amplas e de longo prazo. É uma alteração profunda na forma de fazer.
Não se trata, portanto, de apenas definir pontos de chegada e buscar soluções ótimas para um conjunto de problemas estáticos e segmentados. Porque a transformação necessária é maior do que um tema e exige mais do que uma boa técnica. Já aprendemos muito sobre a técnica e avançamos bastante no potencial de transformação de várias áreas do conhecimento.
Mas o fazer diferente, criando soluções para os novos tempos que se avizinham, nos impõe pensar como todo esse conhecimento e esses recursos acumulados podem estar a serviço da construção não de uma, mas de múltiplas formas de existência, permitindo o engajamento de diferentes vozes e persistindo na implementação de alternativas para alcançar essa vida nova e melhor – leve ela o tempo que levar.
Colocar soluções em movimento sob a condução de quem delas precisa. Isso é o que os territórios nos ensinam. Um método para afirmar a múltipla participação de temas e olhares no processo de tecer caminhos mais efetivos e completos de melhoria das condições de vida.
Sabendo que essa lição não é simples e que há muito a ser mudado em nossas formas de agir como pessoas e organizações comprometidas com a justiça social e climática, a Fundação Tide Setubal se dedicou em 2024 a deixar seus aprendizados mais concretos e abertos ao debate.
Para isso, mergulhamos em um processo de análise e sistematização de nossas metodologias de trabalho, organizando e nomeando práticas e descobertas que nos pareceram relevantes e potentes para abrir novas conversas e possibilidades de aprimoramento.
Foi um ano de muita aprendizagem e amadurecimento, que este relatório vem, de alguma maneira, registrar e celebrar, apontando como cada área, estratégia e programa da Fundação Tide Setubal foram fundamentais, ao seu modo, para a construção dos nossos resultados.
Como destaque desses processos de sistematização, vale dizer que revistamos nossas práticas de fomento no Elas Periféricas, programa de apoio a organizações sociais lideradas por mulheres negras, e na Plataforma Alas, nossa estratégia de engajamento de lideranças e organizações pela equidade racial, publicando os aprendizados e delineando compromissos fundamentais encontrados em nossa caminhada nessa temática.
Também sistematizamos o conjunto do método de desenho, gestão e monitoramento dos apoios financeiros da Fundação Tide Setubal, ressaltando como os instrumentos concretos de acompanhamento de fomentos – planilhas e relatórios solicitados – podem apoiar a construção de uma relação de confiança e aprendizado conjunto entre organizações.
Avançamos igualmente na análise das possibilidades de transformação das relações entre comunidade organizada, investimento social privado e poder público, desenvolvendo o conceito de advocacy colaborativo, uma prática inspirada no caso da implementação de obras de infraestrutura pública no Jardim Lapena.
A relação com o poder público também foi discutida a partir da atualização das propostas do (Re)age SP, método de planejamento municipal que busca colocar as periferias urbanas no centro da organização dos recursos e estratégias do setor público.
O poder público e a necessidade de este avançar em sua capacidade de apoiar novas formas de fazer políticas públicas, que tenham como foco o fortalecimento do protagonismo dos territórios e seus agentes na ação pública, também foram objeto de sistematização em parcerias com diversas organizações que nos acompanham cotidianamente nesses temas.
Publicamos estudos sobre metodologias de transversalidades e orçamento público, um mapeamento das ações públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade, além de uma análise inédita sobre o fenômeno do apagão das canetas e sua possível interferência na eficiência da máquina pública.
Por fim, também realizamos um estudo sobre práticas de desenvolvimento territorial solidário, contando histórias de experiências que, como as do Jardim Lapena, transformam de maneira contínua o espaço onde habitam e criam importantes inspirações de como podemos efetivamente pensar em novas formas de agir e viver de maneira mais justa e sustentável.
Muita gente esteve conosco nesse caminho de 2024. O território nos ensina que este é o ponto central de uma nova forma de fazer: abrir-se para mais vozes e para a construção de mais sinergias.
Assim, finalizo deixando aqui um enorme agradecimento a cada uma das pessoas que trabalharam para que os avanços do último ano fossem possíveis. E um pedido para que ainda mais pessoas se inspirem e se engajem com territórios e seus aprendizados.
A jornada de transformação é longa e complexa, mas o fundamental agora não parece ser conhecer o ponto de chegada nem o momento em que este será atingido, mas, sim, ajustar a caminhada. Uma sociedade melhor e mais justa se faz no processo, com as pessoas no centro. Esse é o método que o território nos convoca a seguir. Aceitemos o convite e boa leitura!

Maria Alice Setubal
Presidente do Conselho

Mariana Almeida
Diretora Executiva